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O Supremo e o Freguês.

2019-08-28
consumidor negócios
No passado dia 25 de julho de 2019 foi publicado o Acórdão n.º 4/2019, do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que veio fixar jurisprudência relativamente ao conceito de "consumidor” no âmbito do exercício do direito de retenção pelo promitente-comprador relativamente ao vendedor que seja declarado insolvente.

Contextualizando: são vários os casos em que é celebrado um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel e, entre o momento da promessa e da celebração do negócio definitivo, o vendedor é declarado insolvente. Em 2014 (no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência [AUJ] n.º 4/2014) o STJ já havia uniformizado jurisprudência decidindo que o promitente-comprador em contrato, devidamente sinalizado, ainda que com eficácia obrigacional com traditio (entrega efetiva do imóvel do vendedor ao comprador), que não obteve cumprimento do negócio no processo de insolvência do promitente-vendedor, gozava de retenção sobre o mesmo. 

De forma abreviada, equivale a dizer que o seu crédito ficava especialmente graduado, inclusivamente antes dos credores que tivessem hipoteca sobre o mesmo. No entanto, o STJ foi chamado novamente a pronunciar-se relativamente a este entendimento e a fixar jurisprudência para determinar, especificamente, qual o alcance das pessoas que podem gozar daquele direito de retenção, na medida em que seria exclusivo dos consumidores. Tornou-se portanto necessário definir o alcance do conceito de "consumidor” para este efeito.

Ora, o caso prático que chegou ao STJ e que motivou a nova tomada de posição tem a configuração seguinte: um conjunto de pessoas singulares celebraram um contrato-promessa de compra e venda de duas frações autónomas, tendo instalado e passado a explorar aí uma clínica. O promitente-vendedor foi declarado insolvente e na graduação dos créditos (a hierarquização dos créditos dos diferentes credores) importou perceber se este conjunto de credores gozaria ou não de direito de retenção sobre as frações, uma vez que, beneficiando da retenção o seu crédito ficaria graduado antes dos credores que tinham hipoteca sobre as frações. Assim, a questão central e em contenda consistia em apurar se, à luz do AUJ de 2014, tais credores caberiam no conceito de consumidor. 

Importa de forma breve referir que os Acórdãos Uniformizadores são admissíveis quando o STJ profere um acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente emitido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito. E nesse caso é possível recorrer dessa decisão para que seja proferida uma decisão que uniformize o entendimento a ter naquele caso. Foi precisamente o que sucedeu aqui.

O AUJ de 2014 não tinha definido este alcance preciso dos credores que por ele ficariam abrangidos, ou não, no domínio do conceito de consumidor. Havia, no entanto, definido que não seria consumidor quem procedesse à compra (ou promessa de compra) com o objetivo de revender (quem fosse profissional do ramo, aquele cuja atividade profissional consistisse na compra e venda de imóveis ou na compra com o propósito de dele obter lucro enquanto objeto imediato). E, ao invés, seria consumidor para aquele efeito quem o adquirisse para satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado) e para outros fins que não se integrem numa atividade económica levada a cabo de forma continuada, regular e estável.

Tudo considerado, e fixou agora o STJ jurisprudência uniformizada que assim sumariou:
"Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa.”

Ou seja, considerado que o conceito de consumidor, para aquele efeito, não havia sido uniformizado, e que existiam decisões contrárias neste domínio, o STJ consolidou este entendimento com a sua decisão. Aliás, fê-lo na concordância com as disposições legais existentes neste domínio, previstas designadamente no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, nos termos da qual se considera consumidor "[..] todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, […]".

E o STJ vem concretizar a interpretação que lhe pareceu já dever resultar do AUJ 4/2014 da proteção da parte mais débil e com inferiores recursos (técnicos e financeiros), ou seja, o consumidor que adquire (ou promete adquirir) bens para uso privado, a fim de satisfazer necessidades pessoais e familiares. E que nessa proteção não caberá quem adquire imóveis para neles prosseguir a sua atividade profissional.

Autoria:
Miguel Barbosa
Subdiretor de Operações / Dpt. Jurídico

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